quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Ruva Nai II

Ruva Nai II


A tatuagem da tua memória é cravada no subsolo da minha pele:
Pois que nasça sangrenta porque desconheço o feitiço das cinzas
Que fluem nas entranhas das minhas vísceras!

O passar da mão pelo corpo, sentindo todo arrepiado,
Por tocar o mais intimo do prazer
E ver o teu sangue escorrer pelo inesperado da minha pele:

Era a saudade, um gosto doce que saboreava na boca,
Antes da saliva pelo desejo de te ouvir
Vociferar o parcialismo presente no resto do mundo.

Era o rasgar do universo de palavras sem sentido
Não vendo nos olhos sedentos do amor,
O percorrer deste logro com as mãos calvas de adornos
Enquanto bebíamos do surreal prazer do insignificante desejo.

Ai! Que carnificina no teu corpo virgem.
O teu cheiro no bafo deles, amolgando o meu corpo rijo
São os beijos doces no amargo dos meus dias
De facto, tudo dito e nada feito, boa noite meus senhores!


Pomea da obra: Ilhéu revolto

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Tenho na boca

     Tenho na boca


Proibido desejei os lábios de cetim… 
Renegado pela consciência da mentira
Destruída do incorpóreo ser, e assim
Tudo no ouro arde quando o vento vira…

Refugiada na reluzente miragem, 
Soprava, no cântico dos vencidos,
A tua cianogénica imagem,
Pelos anseios em mim definidos.

Debaixo do teu infame olhar 
Escondeu-se do rosto o engano.
No virgem proscénio, o gosto humano 
De quem me queria amar

Mas, no corte abissal da minha boca
Jorrava do sangue a chama louca
Que algo mais que a saliva fizeram ter: 
- Em ti, o desejo e trono do prazer!


poema da obra: Ilhéu Revolto

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Chopin – Sonata Nº 2 em Si bemol menor Opus 35 (Marcha fúnebre do Tubarão com óculos de massa)

Chopin – Sonata Nº 2 em Si bemol menor Opus 35 
(Marcha fúnebre do Tubarão com óculos de massa)

Nas últimas gotas do cântico ilhéu
Espalha o sol, naquela tarde bucólica,
O toque do melífluo relógio pelo céu,
E o presságio libido da vontade fálica

Por debaixo dos óculos de massa
Observa obcecadamente a mão
Percorrendo de forma devassa
As teclas dicromáticas da solidão.

Com a outra, explora e acaricia
O corpo angelicalmente deitado
Sobre o leito, em que se delicia,
Atingindo o clímax com o seu amado

É uma tela de intermitente melodia canónica
Tocada nas aguarelas e pautas da clave de sol
Com instrumento e dedos em harmónica
Alcançando o seu desfecho no auge do Si bemol.


poema da obra: Ilhéu revolto

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Açores lilás

     Açores lilás


Nos teus olhos carregados do oceano
Vejo o imenso azul neste humano.
Nos cabelos longos e flavescentes,
Vejo a sofreguidão dos adolescentes.

Nas extremidades do corpo esguio
Vejo eflúvio galáctico de emoções,
E elípticas turbulências de paixões  
De aroma balsâmico, em que me delicio

És nebulosa constelação de vontade insana, 
De planetas que gravitam em teu redor.
És pulsar brilhante de que sou sofredor. 
Assim vejo-te minha deusa humana!

Poema da obra: Ilhéu revolto

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Moço de recados


     Moço de recados


Teu nome proibido,
Que ninguém o diga!
No âmago é sentido
E que a ingenuidade o siga!

É céu estrelado que mais brilha
No som da noite escura,
E reflexo tingido na imensidão da ilha
Que ao compassado coração cura.

Pequena inquietude murmurante
Repetidamente ditada ao ouvido
É na cabeça o desejo do amante
E na vontade o eco prometido.


poema da obra: Ilhéu revolto

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Chopin- Noturno em Mi-bemol maior, Opus 9, N. 2 (instinto de sobrevivência)

Chopin- Noturno em Mi-bemol maior, Opus 9, N. 2
(instinto de sobrevivência)

Ao toque melífluo do relógio cavernoso
Que mais pareciam os gritos em tom jocoso
Das almas desconjuradas pelo inferno
Despenhava-se para o real hodierno

Anunciava-se a estridente hora do noturno
Protetora do pecado sinuosamente perpetrado
No corpo vertiginosamente soturno
Avesso ao querer do ser etéreo castrado

Acordava assim, imovelmente desamparado
Para o cheiro fétido do tenebroso teratismo
Que de olhos negros sobre o corpo debruçado
Ia devorando a alma do ilhéu pró abismo

Na última centelha prateada de luz
Que daquele cântico ilhéu se escapava
Inspirou-se no instinto visto na cruz
E assim, o tubarão com óculos, ele matava!

Poema da obra: Ilhéu Revolto

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Miosótis em tela

Miosótis em tela


Espreito por entre a cortina da alma
(Vssh! Vsssh! Vsssh!)
Vejo o que chove sobre terra molhada
(Vssh! Vsssh! Vsssh!)
Quando a pretensão em mim se pousa com calma
(Vssh! Vsssh! Vsssh!)
E desvendo a imensidão da minha amada

Enrosco-me no sentimento, aninhado em ti
(Tzaros! Tzaros! Tzaros!)
E polimerizo em quimeras tudo o que por nós senti.
(Tzaros! Tzaros! Tzaros!)
Sonho abraçar-te até fundirmo-nos num único ser
(Tzaros! Tzaros! Tzaros!)
E no desenho do manto de brumas, o tudo ter.

És mais que a simples floresta de uma árvore
(Chuác! Chuác!)
Mais que a pedra que enaltece o mármore
(Chuác! Chuác!)
Ou do orvalho escorrendo pelo miosótis

Serás mais que o sabor do mel brotando das pétalas
(Chuác! Chuác!)
Mais que fervoroso desejo em flor, na primavera:
(Chuác! Chuác!)
-Serás, no afago, o florescer que o desejo quisera!

poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 17 de janeiro de 2016

Funeral

Funeral


Sentimento de vinculação
Demonstra o lado animal
Será necessidade d’amor maternal?
Pede mais o bebé chorão.

Carregados de atos falhados.
Somos nós, os homens baralhados!
Jamais, obstinados, teremos o perdão.
Somos nós, os escravos desta condição!

Rasga-se o útero que a terra come
E assiste-se ao messias desfalecido
Será assim que o desejo se consome?

…Pergunto à gralha no cimo da capela
- Que decídua morte foi aquela?
- Grasna, Ó pobre bicho. Grasna ao vento da sorte!

poema da obra: Ilhéu revolto

sábado, 19 de dezembro de 2015

Puro de manhã

Puro de manhã

Dança pequeno colibri
Voando pelo vale com a certeza
Que procuras a flor que abri
De cor branca de pureza

De tão grande e insaciável viagem
Me presenteias com formosa imagem
O fim do meu inverno macilento,
E o começo de um amor sedento.

Espreito sobre o sol no limite do horizonte
O som afagado do bater das asas douradas
Quando procuras saciar-te na minha fonte

Pousa gentilmente sobre a mão calva
Desflorada suavemente nesta manha alva
E sorve o néctar que brota da alma

Poema da obra: Ilhéu Revolto

sábado, 28 de novembro de 2015

Os amigos do Gaspar

Os amigos do Gaspar

Da capela ao botequim
Vai pelas ruas a procissão
Ladra o gato, mia o cão
Lento espectro vai sem fim

O finório embriagado vai à frente,
Rezando em latim a oração.
Atrás o padre penitente,
Recebendo a extrema-unção.

Segue o préstito da capela ao botequim
Serve-se no copo o bagaço e o vinho
Ó meu deus vai vir tudo no pasquim!

Algazarra com o padre embriagado
E acaba com o bêbado admirado
Ó meu deus está tudo trocado!

poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 15 de novembro de 2015

A guerra

     A guerra


Um pequeno lapso do ego
Torna o homem cego.
De cabeça lança-se na guerra
E derruba o irmão sobre a terra.

Infligindo a faca que penetra no corpo
Dilacerando a persuasão da vida.
Dispara o tiro trespassando a vontade tida,
Do cadáver que hoje está morto.

Beligerante batalha do infecundo
Mundo macabro e moribundo
É horrorizada, herança humanizada:

- É o vivo que a terra alimenta!
- É o morto que a orbe come!
…E tudo isto o atormenta!


poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 1 de novembro de 2015

Fluido cadavérico

     Fluido cadavérico


Crosta de terra seca que o sol marcou,
Sobre as margens do rio extinto.
São rugas do velho que se evaporou,
No sopro do árido vento que sinto.

Depositado no cofre fechado,
Pousado no leito estéril do rio
De choro cadavérico jamais amado.
É tudo o que resta do invocatório!

Eram anseios d’outra hora família
Que na moribunda consciência sofrida
Ao pobre homem tudo o confundia

Agora, só pedaços de melodias desfeitas
Das memórias que nas lágrimas lhe corriam
Que antes de ao mar longínquo chegar, morriam.


poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 18 de outubro de 2015

Ser que habita em mim!

Ser que habita em mim!


Dos escombros do antigo Eu
Renasce da cinza queimada
Estranho bicho, Ó Prometeu!
E fénix eterna apaixonada.

Erguido nas ruínas do mal
Criado na chuva de água e fogo
Cuspida do agora, celestial.
Brinco no estranho jogo!

Ó Imortal espírito que cresce,
No Ser que habita em mim,
De selvagem e incorpóreo fim:

- Por todo o desígnio que em ti nasce,
E que no dorso das asas se dilui.
Serás a Phoenix, (Ísis) que por mim flui!


poema da obra: Ilhéu revolto

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Fado

    Fado


Ao som da guitarra acústica, a portuguesa
Canta com espírito, o verdadeiro fado,
Dando à saudade um significado novo:
- O transparente sonho da incerteza.
Mas todas as noites, deita-se a meu lado,
Fatigada, exausta, de dar a voz ao povo.

Ao diurno, refugia-se no corpo de mulher,
Sedente, fraco, subjugado ao logro 
Da condição humanamente factual.

Da boca cerra o destino e acredita ver
O tempo que passa na brisa do sopro 
E devora a dupla relação pactual.

Ao nocturno e provocado sentimento ausente 
Nela, minha esfinge de mármore, me centro
E receio pelo nosso amor infinito e divinal  

Porém todas as noites ouço-a no café, 
Misturada no cheiro dos cigarros e vício nocturno.
Acompanhada é, com os acordes duma filosofia,
Que a guitarra vai trilhando num tenebroso anseio de fé.
- Canta ela, a voz translúcida que almejo, observo, taciturno.
Sei que o traslado do amanhã existirá: é ela Amália!


poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 27 de setembro de 2015

Ou serei absurdo

     Ou serei absurdo


Sou a materialização do Ser oculto
Que nas vestes do corpo bafiento
Emerge da pele que cobre o vulto
Por entre os retalhos do sentimento

Que devora o desejo inoculo
Quando exprimido no frio
Do tremido e gélido arrepio
Do que soa a falso, no vernáculo.

A tinta gasta pelo pulsar do braço
Que palavra a palavra lacera do verso
Ao que o poeta define como seu traço.

O que junta letra a letra a digna opção
Do segredo que percorre de mão em mão
Do que escrevi, e nada fiz… o absurdo sou!


poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 20 de setembro de 2015

Mefistófeles

   Mefistófeles


Gato pardo que olhas no escuro
Sorrateiro sobre as pedras do passeio
De relance nos teus olhos, o meu futuro
Animal esguio, do meu anseio.

Por entre o véu que cobre o mundo
Exalo gotas de desespero profundo
Que brotam rudemente da boca
Enquanto consumo a fuga louca

Por entre frascos e cacos de vidro
Películas e papéis. Procuro o proibido
Muito para além de tal trágico vulto
Nada mais resta, senão piedoso indulto

Olhos penetrantes de feitiço como a lua
Pousados sobre o veludo debaixo do telhado
De negro xisto onde o destino está selado
E agora a minha alma é toda tua!


poema da obra: Ilhéu revolto


domingo, 13 de setembro de 2015

A fusão

    A fusão


Hoje escrevo para mim a dor,
Que amanha vou sentir no vazio.
Com o lápis pincelo o terror,
Num poema negro de carvão frio.

Sou a besta, fera na criação
Arranco, rasgo com a definição
Escrevo promíscuo e egoísta
O bélico que o verso conquista.

Da boca cuspo, o ser loucamente
Traçado no cinzento do negrume
Por entre as linhas compostas do verso.

Corpo, mente amam sofregamente
Que o desejo a isto se resume:
- Mortas! As palavras do universo!


poema da obra: Ilhéu revolto


domingo, 6 de setembro de 2015

Atrasadinho

Atrasadinho


Corre! Corre bicho-do-mato,
Vai a casa e veste o fato.
Ouve! Ouve! Toca o sino.
Vai depressa que está fino!

Ligeiro, ligeirinho vai a caminho,
De sapato engraxadinho.
Passo a passo, estrada fora.
Vai! Vai depressa, sem demora

Cuidado, cuidadinho não pises na bosta.
Que o cheiro cheira a esterco.
E entra na entrada da missa posta
Que o padre reza! E o final do terço perco…
                                                         (Ámen)!


poema da obra: Ilhéu revolto

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

In Faial 1998

     In Faial 1998


Naquela noite espreitava uma penumbra
no eco dos olhares indiferentes,
dos que hoje já não estão presentes
e dela já nada mais se vislumbra.

Foi treva de cão aquela noite,
que ao passo da sombra do luar,
fez o diabo ceifar com a sua foice
os sonhos num incrédulo murmurar.

Rasgou a terra com o seu tridente.
levantando os demónios desconjurados,
que assombraram todas as almas inocentes,
enquanto os anjos sangravam pelos derrotados.

Por entre as chamas, veio ter comigo à cama.
Por um braço segurava-me o arcanjo,
pelo outro, o profano de quem me ama.
Abadom insinuava o pecado do beijo

Na casa cansada, se extinguiu
Uma família de pedra que se esmoronou
Talvez nímio, talvez parco! E fica pouco,
é certo, do que nunca existiu.


poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 23 de agosto de 2015

No último suspiro

     No último suspiro


Penso! Escrevo obtuso no relevo
Do papel. Os contornos do enredo
Que rabisco. Incisivo! Tenso,
Limpo o que não, com o lenço.

Dúbio estou entre o vértice escuro,
De cada palavra que expressei,
Para o sentimento prematuro
Nascido do vocábulo que usei!

Percebes agora que o acrescento que renasce
Para descrever o vivido de cada momento
Estará pois amarrado ao significado mais banal.

Se por entre mil palavras escolhesse
Exprimir a simplicidade de primordial sentimento:
- Deste poema certamente seria o ponto final.



poema da obra: Ilhéu revolto

sábado, 15 de agosto de 2015

No beijo que a ilha dá


     No beijo que a ilha dá


No outono há folhas que ficam e outras que caem!
Nas tarde enfadonhas de castanho,
O céu chora as que morrem,
E às que permanecem, acha estranho.

Na ilha, um barco vai abrindo as águas,
Inquietadas com um sopro invisível,
Que traz à boca todas as mágoas,
Mordendo os lábios com o impossível.

Um último apito ouve-se num cais,
Cheio de lenços brancos acenando o adeus
Mas o meu é vermelho, porque vais,
E não voltas, carregando a ilha, com sonhos meus.

Por entre os olhos despidos no barco,
Estás tu, disfarçando um último olhar,
Pousado sobre a baía esculpida em basalto
Negro dos corpos mortos.

É que aqui jazem as folhas que caem
E as lágrimas que me consomem
São a saliva do beijo que a ilha dá.


poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 9 de agosto de 2015

Ruva Nai

     Ruva Nai


Os lábios ressequidos pela loucura
Desejam tocar a tua pele virgem.
A loucura é que começo a amar,
Só porque o cheiro da tua pele não é meu.

Magoa-me não sentir o teu corpo,
As pequenas agulhas, que dilaceradas na alma,
Fazem do afastamento um esticão do tempo,
Que vai distorcendo este meu corpo insaciado.

Vejo ainda as manhas frias batendo-nos de madrugada
Quando nós dois bebíamos juntos do amor.
Os dias, gélidos, faziam-nos amar o céu chuvoso e a lama,
Talvez o único sítio onde as nossas mentes penetraram.

Tenho uma decrepita vontade de chorar nestes dias,
O insignificante gosto pela podridão dos subterfúgios dolorosos
- É que a depressão é a janela do céu e ela abate-se sobre mim.
Agora escuto apenas o movimento longínquo dos nossos corpos!

Ai! Queria voltar atrás, mas agora os lábios ardidos,
Desejam apenas palavras que complementem a alma.
Ainda vestes a minha alma quando falas com os outros?
Ou novas são as tonalidades de ardência que corrompem o coração?


poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 2 de agosto de 2015

Nas margens do rio




Nas margens do rio


No recanto mais profundo da alma 
Onde a felicidade se confunde 
Com o resquício de luz que contunde,
Trilha um velho sábio na sua palma.

Toca com uma certa misantropia
Um rio que desagua nas suas margens
Sentimentos de outra hora família
Que agora acostam nestas paragens

Nas águas geladas de areia batida
Sabe que ao desejo não cabe 
A vontade da consciência esmorecida

E no lúgubre fundo dos oceanos
Observa com uma certa vaidade 
A probidade dos pedantismos insanos.


poema da obra: Ilhéu revolto


domingo, 26 de julho de 2015

Arquipélago nos Açores

     Arquipélago nos Açores


Por entre a mística de bruma da vontade atlântica
Ergue-se do mar revolto, Ilhas de pedra e lava vulcânica.
Envoltas em mistérios, cravados nas escarpas agrestes
Crescem, no basalto, verdes e fortes os ciprestes.

Gentes partidas da ocidental praia de Portugal
Moldaram-se aos ímpetos caprichosos da tempestade
Erigindo sobre austero arquipélago o seu graal
E o significado açoriano nas pegadas da eternidade

Sobre a marca no cascalho basáltico do areal
Ventos e vendavais fustigam os bustos de sal
Sismos e vulcões que um credo sempre alcança
Somos nós, o povo açoriano, quem carrega a herança.


poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 19 de julho de 2015

Saudade

Saudade

A saudade vem,
Com uma lição de discordância.
É o eco nas gaivotas da lembrança,
Que a vida tem.

A saudade é sentir
O sublime toque da emoção
(Duma ausência que é estranha)
Que asfixia o coração
De tanto se ferir.

Saudade é memória propagada,
Numa folha arrancada
Perdendo-se na noção do tempo
Com o seu lento movimento.

Saudade é desejo de alguém
Sem se saber quem
É o virar duma página
E não conseguir ler
Com medo que se possa esquecer.

Saudade é a mão que segura o ventre
Quando desejo ter o sempre.
Fingir gostar duma dor acompanhar
Quando a angústia da separação é a devoção.

É sangue escorrendo pelos poros,
Saber que no passado será,
Como no futuro foi:
A tentação para os nossos corpos.

poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 12 de julho de 2015

Grego de Tessália

     Grego de Tessália


Harpias decaídas com o desejo na boca.
Asquerosos seres que escarram a vontade louca,
Da acrimónia e parcimónia entre o sal e o suado, 
Quando comem a carne crua de cavalo cansado.

Antes julgadas estátuas de ouro e esfinges de marfim. 
Hoje d’escárnios silfos dum putrefacto cheiro outonal, 
Com leprosos desejos regurgitados na bandeja do serviçal,
Devorando demoniacamente o decrépito desdém pelo delfim.

Ó Ser subserviente, que empunhas o punhal, 
Que rasga a carne sangrenta em ferida viva.
Que serves sem saberes a quanto o seu mal.

Esquece a pírrica vitória sobre as Simplégades,
Com argúcia foge aos vulcões de lava e suas manhas
Pára!…E alimenta-te tu das próprias entranhas…


poema da obra: Ilhéu revolto

domingo, 5 de julho de 2015

Tudo o que aquece


     Tudo o que aquece


À desventura do vento alado
Galga incessantemente o grito
Na corda desafinada dum instrumento
Que sulca sobre a terra rasgada.

Num risco que divide cada lado,
Entre os de cá e os de lá, levito!
Despojando no pensamento que voa ao vento
O intento da memória dita (a perniciosa amada).

Despolarizante, o impulso gerado no consciente
Do espaço sináptico que o encerra nesta cela
É aqui criada a reminiscência que sacia a fome:

- A memória é o espaço quiescente,
Entre o bramido da chama duma vela
E o oxido que a consome!


poema da obra: Ilhéu revolto


terça-feira, 30 de junho de 2015

Travessa

Travessa


Na travessa do mau tempo
Entre o meio e o inteiro
Desalmado, sopra o vento
Às soleiras, que é verdadeiro

Na travessa tão pequena
Bate a chuva de açucena
Molha o pingo na janela
E as pedras da ruela

Na travessa onde me sento
Levo às casas o meu tento
De um lado estão os pares
Do outro os ímpares

Na travessa sem princípio e nem fim
Dança o vento e a chuva sobre mim
Tão vocal é o delírio deste ver
E pergunto em que porta irei bater?


poema da obra: Ilhéu revolto





sábado, 27 de junho de 2015

Mar

     Mar


Oh mar! Tão intenso e imenso,
Deixa deitar-me no teu colo.
No teu azul a dor eu repenso,
E para ti dedico este canto a solo

No bater das ondas, ouço a tua voz,
Os segredos que me queres contar.
Vejo o fundo, e o céu de todos nós,
Que com o teu manto nos fazes sonhar.

Na rebentação emerge a tua raiva
E dos teus olhos submerge todo mal.
Sei que o teu toque tem o sabor do sal
E que o teu beijo é mais que carnal.

Foste o palco de dolorosas batalhas,
E muitos em ti invocaram o teu nome
Outros lançaram-te as suas malhas
Para poderem aclamar a sua fome.

Muitos por ti mataram, morreram
Desesperaram e por ti sofreram
Mas com a cabeça sobre o teu peito
Sei que onde repouso é o meu lar
E nos teus braços sei o que é a mar.
Obstinado, percebo o pequeno feito.



poema da obra: Ilhéu revolto

terça-feira, 23 de junho de 2015

A prosa do pedinte

     A prosa do pedinte


No entoar duma velha balada,
Ouvia os ecos na cabeça.
Com a cara encostada no vidro,
Ouvia-o percorrer pelo túnel:

- Um pedinte com a sua amada,
Num movimento que talvez mereça
O prazer do folhear de um livro
Entranhando o perfeito batel.

No abrir do gesto insignificante
Embarcava pela porta, a nuance
Da negada vaidade ao seu alcance.

Amordaçado ao trilho de ferro
Entoava no cálice de corpos
O olhar desviado do prazer

No opusculo, escondia o erro,
Acouçado dos meus olhos mortos:
- A lógica que ao pobre queria contradizer.


poema da obra: Ilhéu revolto

caminho da noite

     Caminho da noite


Condenso a sombra
Numa pequena agonia de luz.
Faço da noite,
O vício que me seduz.

Viajo num sentimento vago
Que arde com a dor que trago
Viajo com um corpo fraco
Num deserto magoado

Ando, de mão em mão,
Nos caminhos que não vejo
Mas é assim que desejo
A noite com a sua escuridão

Depressa, devagarinho,
Já o sol vem a caminho.
Vou vivendo o inverso
E desta forma acabo o verso

poema da obra: Ilhéu revolto

Sonha-me fora

     Sonha-me fora


Não eras mais que um pedaço de barro.
Rude, disforme, despido de sentimentos.
Trabalhei-te com a mais pura das ferramentas,
No escopo a vontade de criar algo raro.
Passava noites imaginando os monumentos:
- Serias o prazer para as velhas tormentas! 

No meu jardim ocupavas o lugar divinal, 
Por seres em tudo diferente das outras. 
Uma rosa de pétalas negras, 
Tingidas com o esforço do meu sangue.
Adornada com os mais perigosos espinhos,
Mas necessitando tanto dos meus carinhos,
Por seres tão frágil e especial.

Existia mais, queria ter-te perto de mim.
Retirei-te da terra que alimentava a glória.
O abismo redimia o teu papel, o fim. 
Mas numa estúpida manha fria,
Sem dizeres bem o que querias, 
Jamais tu não havias.

Agora nos braços, a tua liberdade, o espaço
Mas no barro nunca mais recordei o teu traço
Apenas nas ferramentas lia “Amor vincit omnia” 



poema da obra: Ilhéu revolto